A MÚSICA E A SUBJETIVIDADE NA
CONTEMPORANEIDADE
Cledione Jacinto de Freitas[1]
Em
uma pequena cidade do interior brasileiro há uma avenida curta, onde aos finais
de semana as pessoas que procuram diversão se encontram próximo a um bar que
funciona também somente aos finais de semana produzindo festas open bar, com
cantores sertanejos, e tendo como público preferencial estudantes
universitários, ao lado em um espaço vago estacionam carros com som ligado
havendo grande aglomeração de adolescentes e jovens para ouvir e dançar funk.
Esse
é apenas um exemplo singular dentre tantos vistos e vividos cotidianamente nas
cidades brasileiras que passam desapercebidos e, fazem parte da paisagem e da
rotina urbana incorporado como parte da cultura local tendo como pano de fundo
a música produzindo determinados modos de encontro e de significação de um
conjunto de gestos, gostos, linguagem, adornos e não outros, levando a se
perguntar porque Funk e Sertanejo e não Bossa Nova, MPB, Rock, Pop, Samba?
Seguindo
ainda essa linha de questionamentos pode-se indagar como o sertanejo,
hodiernamente sertanejo universitário, e o funk se tornaram hegemônicos
ganhando às ruas, nos carros, nos bares, nos celulares, nas exposições
agropecuárias ou festas tradicionais, nas novelas, programas de TV de canais
aberto enfim, tornaram elementos referenciais de identificação do Brasil até
internacionalmente.
O funk e o sertanejo ocupam o lugar, ou
melhor, tornaram as músicas populares brasileiras por serem os estilos
preferidos do povo, da massa ramificando por outras camadas sociais, ganhando
hoje a companhia das músicas de cunho religioso (as ditas gospel) crescendo em
ritmo acelerado em contraposição aos demais ritmos que ficaram circunscritos a
determinados setores, a círculos, segmentos sociais. A MPB que pela própria
terminologia era para ser popular se tornou elitizada, dito de outra maneira
foi elevada à categoria de elitizada.
Nesse precedente em qual período e em quais
condições essa mudança ocorreu, não só na preferência de estilo, mas de modos
de se vestir, de comunicar, se relacionar, de produzir significação de suas
experiências e vivências, adotando certos modos de vida em detrimento de outros
tantos, nesse interim além de adotar esses modos de vida e qualifica-lo como “o
melhor” acabam por desqualificar modos de vida que não se enquadram nesse
padrão.
Em
uma perspectiva histórica a música faz parte da constituição das sociedades
desde a Antiguidade configurando modos especiais das pessoas relacionarem em
diversas situações significativas da vida tais como cerimônias e festivais. À
medida que a sociedade se aproxima da modernidade a música também sofre
mudanças significativas, tanto no número de acordes, instrumentos, utilidade e
público principalmente como um modo de reunião da Corte como também com os
cancioneiros que percorriam vários reinos para divertir a nobreza.
Com
a modernidade assistiu também a constituição das óperas como espaço de produção
musical para a nobreza e para a burguesia ascendente, uma música condizente com
os modos de vida modernos de privilegiados, mesmo a ópera sendo hegemônica não
se pode desconsiderar a música produzida pela massa, pelos proletários, como um
modo de sociabilidade e de afirmação de suas práticas sociais e culturais.
A
música até o século XX por mais que possuíssem suas peculiaridades não
conseguia uma difusão e propagação devido à falta de mecanismos para
compartimentaliza-la e reproduzi-la indefinidamente, tendo que ser sempre
reproduzida, treinada, ensaiada para cada ocasião, a música era sempre nova por
mais que fosse a mesma e não era ainda disponível para todos. Com o advento das
novas tecnologias, inicialmente com o disco de vinil, depois com as fitas K7,
em seguida com o CD, DVD e com as mídias digitais a música tornou objeto de massificação,
podendo agora ser produzida em série e reproduzida em vários locais ao mesmo
tempo.
A
massificação da música coincidiu com a emergência do que Debord (1997)
denominou de Sociedade do Espetáculo em que as relações são mediadas por
imagens, em que o imagético está na ordem do dia, e a construção da imagem e
aparecimento de cantores em espaços de espetáculo concomitante com o uso da
tecnologia para modulação da voz são estratégias para a apresentação das
músicas que serão os hits do ano visando o consumo, as músicas já não buscam
mais um fim além de ser consumida e “O consumidor real torna-se consumidor de
ilusões. A mercadoria é essa ilusão efetivamente real, e o espetáculo é sua
manifestação geral.” (DEBORD, 1997, p.33)
A
música também nas últimas décadas expressa os preceitos pós-modernos ou
conforme Bauman (2001) a modernidade líquida em que o efêmero, o plástico, o
provisório e a liquidez das relações e das coisas são buscadas como objetivos,
nesse tocante a banda Titãs (2001) em sua música “A melhor banda de todos os
tempos da última semana” corrobora com essas mudanças ao
criticar a produção musical na atualidade ao problematizar a produção
capitalística de músicas e cantores ao pontuar que “A melhor banda de todos os
tempos da última semana, o melhor disco brasileiro de música americana, o
melhor disco do últimos anos de sucessos do passado, o maior disco de todos os
tempos entre os dez maiores fracassos”, assim como as mercadorias não são
feitas para durar as músicas também são feitas para consumo rápido.
Essas
mudanças ocorridas produzem modos de vida diversos dos períodos anteriores na
relação com a música e seus conteúdos, mudanças essas que atuam na produção de subjetividade
entendida como “[...] o conjunto das condições que torna possível que
instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como
território existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de
delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva.” (GUATTARI 2006, p.19)
As
subjetividades atuais conforme Guattari (2006) são subjetividades
capitalísticas pautadas nos modos capitalísticos de produção e, a música não
foge a essa regra haja vista o aumento significativo do consumo de tudo que é
relacionado à música desde camisetas, CDs, DVDs, shows até entrevistas e
brindes, bem como a presença da música na maioria dos comerciais e a produção
sistemática de tietes e fãs clubes.
A
música produziu e ainda produz modos de vida, ou melhor, “estilos” de vida
variando conforme o ritmo musical como se pode verificar no Woodstock e seu
lema sexo, droga e rock and roll e seu consequente modo hippie de se viver, do
movimento punk, do sertanejo e suas vestimentas características recordadas
todos os anos nas festas juninas na figura do caipira e da utilização da bota,
chapéu, calça apertada e fivela, do funk com a vestimenta feminina de roupas
curtas, as danças sensuais dentre tantos modos de vida intimamente relacionados
com os estilos musicais adotados/seguidos como significativos.
Essa
adoção de determinado estilo musical como o melhor e o único leva a rejeição de
outros estilos e ritmos musicais, assim também, outros modos de vida como
exemplo os defensores do modo de vida “bruto, rustico e sistemático” calcados
no estilo/ritmo sertanejo que não concebem como legítimos os modos de vida
“boy” que seguem os estilos musicais como o rock, ou dos intelectuais que são
adeptos da MPB, não aceitam como legítimo os modos de vida cowboy e funkeiro.
A
música atua como um forte produtor de modos de subjetivação na contemporaneidade
e produz uma subjetividade fortemente calcada nos modos capitalísticos de
produção baseados no espetáculo, no excesso como se observa na música da banda
gaúcha Cidadão Quem “Pra que tanta inteligência, pra que tanta emoção, qualquer
coisa em excesso faz sucesso meu irmão, tanta gente com certeza, quanta gente
sem noção, em excesso até o fracasso faz sucesso por aí [...]” (LEINDECKER e GESSINGER,
2007).
Nesse
interim resta-nos perguntar quais modos de subjetivação estão sendo produzidos
hoje e quais ressonâncias ocorrem nos modos de pensar, agir enfim nos modos de
vida tanto individual quanto social, quais são hegemônicos, quais produzem
resistências e modos de fuga e o mais importante quais músicas, estilos ou
ritmos buscamos como modos singularizantes e que possibilitem uma subjetividade
diversa da capitalística, espetacular, consumista e excessiva.
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